O que aprendemos com a pancadaria do UFC 229 e as condutas de Khabib, McGregor e da organização
Quem leu a crônica que fiz do UFC 229, ocorrido no último sábado (6), em Las Vegas (EUA), já conferiu alguns comentários que fiz sobre as cenas lamentáveis que mancharam a noite que tinha tudo para ser histórica. Em um momento em que deveríamos estar exaltando a grande vitória de Khabib Nurmagomedov por finalização no quarto round contra Conor McGregor na disputa de cinturão mais esperada dos últimos tempos, estamos enojados e preocupados com o futuro da modalidade que tanto amamos. O UFC 229 nos mostrou que o MMA não merece isso, ultrapassamos todos os limites e precisamos falar mais a respeito dos excessos que acompanham nosso esporte, ou vamos seguir falhando miseravelmente nessa luta.
Trabalho com MMA há anos. Comecei em 2011 a escrever sobre o mundo das lutas, e acho que nunca fiquei tão preocupado com a imagem da modalidade. No ano em que comecei como repórter de lutas, sete anos atrás, o UFC fazia sua estreia no Rio de Janeiro. Aquele UFC Rio com Anderson Silva, Mauricio Shogun e Rodrigo Minotauro marcou a entrada de vez do MMA nos corações do público brasileiro. E assim como diversos colegas de profissão, iniciamos um trabalho de popularização. A modalidade encarou no Brasil durante muito tempo uma resistência (em diferentes escalas) que ela também sofreu nos Estados Unidos quando Art Davie, então dono da companhia, teve de lidar, por exemplo, com o preconceito do então senador republicano John McCain, que tratava o Vale-Tudo como “rinha de galo”. Acredite: até hoje existem pessoas que enxergam o MMA dessa forma – no Brasil mesmo. O que aconteceu nos UFC 229 é exatamente o que mais tememos.
A resistência precisa de poucos argumentos para nos parar, mas nós precisamos de muitos para seguir em frente.
O Vale-Tudo virou MMA, evoluiu e cresceu ao longo do tempo. No Brasil, foi um processo duro, mas conseguimos durante um bom período enxergar as lutas no coração do torcedor brasileiro como segundo esporte preferido. O futebol é insuperável, diga-se. É claro que ter grandes campeões no UFC ajudou (e muito) a impulsionar esse sucesso. Mas com a ajuda do The Ultimate Fighter, reality show do UFC que foi transmitido diversas vezes na Globo, e outras diversas ações, a modalidade caiu nas graças do público a ponto de aprender que até mesmo quando não há brasileiro no octógono, ainda assim há interesse.
Conor McGregor é um exemplo de personagem que transcende a esfera esportiva. Ele atrai atenções de todos os lados. Quem gosta de moda o conhece; quem gosta de cinema já ouviu falar a respeito; amantes do futebol já viram jogadores reverenciá-lo ou imitá-lo em suas comemorações… E por aí vai. Hoje, quando ele pisa no octógono, não é só o público das lutas que o assiste.
O problema é que o UFC 229 mostrou a Conor McGregor, Khabib Nurmagomedov e ao próprio Ultimate que há limites para tudo. Se você ainda não entendeu isso da forma correta, avaliando suas próprias ações, a vida vai lhe ensinar de outras maneiras. E antes de citar a culpa de cada envolvido nesse episódio lamentável na história do MMA, quero lembrar que “o barulho” que esse acontecimento está fazendo é relativo a seu peso no cenário esportivo. Não foi a primeira vez que houve uma confusão ou até uma briga pós-luta na história do MMA. Mas isso acontecer de forma tão ridícula no maior show da história da maior organização de MMA do planeta é quase que inacreditável.
Conor McGregor se tornou nos últimos anos o maior nome já visto na história do UFC. Muito pelo que fez dentro do octógono, claro, mas principalmente pelo que fez fora dele. Irreverente, ousado, falastrão, destemido, estiloso, bonito, criativo, inteligente…. Todas essas características entram em seu pacote, que unido ao talento como lutador resultaram em um fenômeno midiático. O problema é que depois do incidente ocorrido em Nova York (EUA), notamos que seu preciosismo passou dos limites. É claro que o irlandês contribui como ninguém mais para o UFC ser a máquina de dinheiro que é. Ninguém chega nem perto de gerar os lucros que ele consegue. Isso já o separa dos demais. O problema é que se você nunca dá limites a uma pessoa, por mais que sejam largos, um dia tudo pode dar errado. Depois de arremessar um carrinho de ferro em um ônibus repleto de atletas do UFC, quando acabou ferindo alguns lutadores e traumatizando outros, Conor não recebeu qualquer punição da organização. Apenas a polícia de Nova York (que não está nem aí para a popularidade de McGregor) agiu. No fim das contas, o irlandês pagou uma fiança de quase meio milhão de reais e se comprometeu a cumprir horas de serviços comunitários e passar por um tratamento de raiva. O UFC precisava passar uma mensagem naquela situação também, mas não passou. Nem pro McGregor, nem pro mundo.
Nos últimos anos, acompanhamos a ousadia de McGregor evoluir sem freios. Foram várias atitudes que fariam o Dana White de 2011 punir ou até banir um lutador. Mas os tempos são outros. Hoje, mais do que nunca, entendemos que o UFC é uma empresa de entretenimento. Ela preza pela legalidade e seriedade no âmbito esportivo, sim, mas muitas vezes coloca o entretenimento acima da esportividade ao tomar decisões. Afinal, sempre existem contas a se pagar, e muitas vezes o público das lutas não é só o suficiente para arrecadar essa grana. O amante “hardcore” de lutas pode viver a vida inteira tranquilo e feliz assistindo combates entre lutadores que não necessariamente se provocam ou promovem rivalidades. Mas para se atingir outros mundos é preciso de polêmica, atenção, decisões sem precedentes. O novo é mais interessante. Sempre.
O UFC, assim como toda empresa séria, tem uma cartilha de códigos de conduta. Eu, honestamente, nunca tive acesso a uma, mas acredito que algumas coisas comuns que vemos nos dias de hoje não sejam incentivadas por lá. Discursos políticos, ofensas de gênero, declarações machistas, roubar cinturões, exaltar o uso de drogas… Tudo isso é comum entre lutadores do UFC hoje em dia. E eis a minha sugestão para a organização ou para as comissões atléticas. Me parece muito fácil redigir um código de conduta e orientar que lutadores o respeitem. “Ah, nós temos um código de conduta, mas não podemos forçá-los a nada”. Forçar não é preciso, mas me parece que o UFC precisa ter mais responsabilidade sobre as ações que seus atletas têm.
Pense na confusão ocorrida no UFC 229. Khabib Nurmagomedov e Conor McGregor serão julgados pela Comissão Atlética de Nevada e podem ter a carreira estacionada por um longo período. O russo pode até perder o cinturão e o posto de campeão dos leves. Os membros das equipes envolvidos na confusão podem acabar respondendo processos e ter problemas com a polícia. Mas e o UFC? Entendo que a organização tomou as providências cabíveis e contratou um batalhão de seguranças para o show, mas penso que a organização também deve responder também pela confusão.
Não preciso nem citar a promoção do caos ao gerar o interesse no UFC 229 usando imagens do ato desprezível de Conor em Nova York. O que acontece é que se a culpa fica sempre sendo dos atletas envolvidos a organização talvez nunca pare pra pensar. “Será que ao permitir certas atitudes estamos incentivando esse caos”?, “Será que não é hora de frear essas provocações exageradas”?, “Proteger o menino de ouro da companhia vale a pena mesmo depois de uma mancha terrível como essa”? A forma como você trata seu funcionário número um será referencia para o número 100. É óbvio. E não sou dono de nenhuma empresa para entender isso. Se além dos lutadores o UFC passasse a receber uma multa também o evento tomaria mais cuidado ao lidar com exageros. E o mais importante: ficará muito mais fácil para o UFC cobrar disciplina de seus atletas. “Olha, recebemos uma multa de US$ 500 mil por essa confusão. Como você e o fulaninho estavam envolvidos e nós avisamos para tomar cuidado, cada um vai contribuir com 15% dessa grana, ok”? É algum absurdo pensar assim?
Outra ideia seria começar a trabalhar a parte psicológica de atletas. Ninguém previu que o russo, frio, sinistro e poderoso que é Khabib Nurmagomedov pudesse perder a cabeça de forma tão surpreendente, né? Cuidar de seus funcionários é cuidar da própria empresa.
Conor continua sendo um ícone do esporte, Khabib segue invicto e campeão do UFC (pelo menos por enquanto)…. Mas e o UFC? E o MMA? Esses dois lutadores, protagonistas de toda a confusão gerada valem mais do que a reputação de uma organização que há tantos anos representa a força de uma modalidade no mundo? Gerar milhões de dólares, bater recordes de audiência e alcançar o sucesso é sem dúvida algo muito legal. Mas estes valores devem estar acima dos valores marciais desse esporte que impacta a vida de tantas pessoas ao redor do mundo? Embora seja óbvio, é bom lembrar. Dois ídolos do esporte como Conor e Khabib deveriam ser exemplos de conduta e dos valores das artes marciais que praticam. A imagem que eles passam com essa bagunça é exatamente a oposta.
Conor, Khabib e o UFC têm suas culpas no ocorrido. McGregor aprendeu que depois de tanto passar dos limites, ele é quem ia sofrer com a falta de limite das pessoas; Nurmagomedov pode perder o cinturão, bem que ele custou tanto a alcançar, por ter se rebaixado ao nível do rival; e o UFC entendeu que deu um tiro no pé ao promover o caos de Nova York e não frear seus atletas diante de tantos exageros.
Todos devem pagar pelo que fizeram – não só de forma financeira, mas com suspensões também.
Aprender com os erros é a primeira lição que um lutador exalta ao conhecer a derrota. Que bom seria se a organização assumisse sua parcela de culpa em toda essa confusão também. Seria um bom recomeço.